terça-feira, 20 de novembro de 2007

BRINCAR NA EDUCAÇÃO FÍSICA COM QUALIDADE DE VIDA!

Heraldo Simões Ferreira*

INTRODUÇÃO
Este estudo visa responder questionamentos que fizemos no decorrer de nossa vida como professor de educação física escolar, mais precisamente na educação infantil. Constatamos durante 15 anos de experiência na educação infantil, tanto em escolas particulares como em escolas da rede pública de ensino, que grande parte dos objetivos de uma consecução de qualidade de vida (QV) entre crianças escolares se dá através da atividade lúdica, dos jogos e das brincadeiras (prática da educação física infantil).
A revisão de literatura nos confirmou que existe uma grande escassez de pesquisas envolvendo qualidade de vida na infância (SABEH e VERDUGO, 2000), pois os títulos, quando encontrados, são superficiais e não englobam a percepção de qualidade de vida dentro do ponto de vista das próprias crianças. Segundo Verdugo e Sabeh {2002}, citando Gerhaz (1997), isso se deve ao fato do estudo de qualidade de vida com crianças ser muito mais complexo do que com adultos.
Em recente pesquisa realizada por Dantas et al. (2003), observou-se que, de 53 estudos envolvendo dissertações de mestrado, teses de doutorado e livre-docência de universidades públicas de São Paulo envolvendo o tema qualidade de vida, somente um destes envolvia crianças. Também foi afirmado que apenas dezesseis pesquisas investigaram qualidade de vida com indivíduos saudáveis.
As pesquisas sobre qualidade de vida com adultos têm progredido, porém os estudos com crianças ainda não. Prebianchi (2003) cita que em uma revisão de literatura internacional, Schmitt e Koot (2001) identificaram que dos 20.000 artigos sobre qualidade de vida publicados nos anos de 1980 à 1994, apenas 3.050 reportavam-se à crianças.
Como foi afirmado por Prebianchi (2003: 59):
é um direito da criança ter padrões de qualidade de vida adequados as suas necessidades físicas, mentais e de desenvolvimento social, o respeito a esse direito é fundamental, pois contribui com o bem estar do indivíduo na vida adulta. Quando os padrões de vida supracitados são desrespeitados ou desconhecidos devem ser realizadas pesquisas que se interessem pelas medidas da população infantil.

Mas, como podemos afirmar que, ao brincar a criança pode estar contribuindo para a aquisição de uma boa qualidade de vida? Para tal questionamento, devemos esclarecer o que vem a ser qualidade de vida.

SAÚDE, EDUCAÇÃO FÍSICA E QUALIDADE DE VIDA.
Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998,b: 36):
As relações que se estabelecem entre Saúde e Educação Física são perceptíveis ao considerar-se a similaridade de objetos de conhecimento envolvidos e relevantes em ambas às abordagens. Dessa forma, a preocupação e a responsabilidade na valorização de conhecimentos relativos à construção da auto-estima e da identidade pessoal, ao cuidado do corpo, à consecução de amplitudes gestuais, à valorização dos vínculos afetivos e a negociação de atitudes e todas as implicações relativas à saúde da coletividade, são compartilhadas e constituem um campo de interação na atuação escolar.
Assim é correta a afirmação que ambas as abordagens possuem objetivo comum: promover uma qualidade de vida favorável.
A Educação Física é um processo de Educação em Saúde, seja por vias formais ou não formais, pois ao promover uma educação efetiva para a saúde e uma ocupação saudável do tempo livre de lazer, constitui-se em um meio efetivo para a conquista de um estilo de vida ativo e em conseqüência favorece a obtenção de qualidade de vida.
Segundo o Conselho Federal de Educação Física (CONFEF, 2002), o profissional de Educação Física é um especialista em atividades físicas, nas suas mais diversas manifestações, tendo como propósito prestar serviços que favoreçam o desenvolvimento da educação e da saúde, contribuindo para a capacitação e/ou restabelecimento de níveis adequados de desempenho e condicionamento fisiocorporal dos seus beneficiários, visando à consecução do bem estar, da consciência, da expressão e estética do movimento, da prevenção de doenças, de problemas posturais, da compensação de distúrbios funcionais, contribuindo ainda para a consecução da autonomia, auto-estima, da solidariedade, da integração, da cidadania, das relações pessoais, da preservação do meio ambiente, visando enfim a consecução da qualidade de vida.
Portanto a Educação Física deverá ser conduzida como um caminho de desenvolvimento de estilos de vida ativos pelos brasileiros, para que possa contribuir para a qualidade de vida da população.
Na educação infantil, a educação física utiliza-se de jogos e brincadeiras como um poderoso instrumento para auxiliar o desenvolvimento das crianças, seja no plano motor, afetivo ou cognitivo com a finalidade de promover um estilo de vida ativo e saudável, conduzindo a uma qualidade de vida satisfatória.


QUALIDADE DE VIDA.
A idéia que compartilhamos é a de que qualidade de vida é um termo que representa uma forma de explicar subjetivamente o que é viver bem, estar satisfeito ou feliz consigo mesmo e com o mundo ao seu redor. O fator principal que a determina é sem sombra de dúvidas o bem estar físico, mental e social.
Porém não é fácil conceituar qualidade de vida, pois este termo ainda não foi estabelecido e também não tem sido empregado corretamente (Silva, 1998, apud Silva et al, 2000). Além disto, a definição de qualidade de vida não é aceita universalmente, gerando discussões acerca desta temática.
Seidl e Zannon (2004: 581) citam Campbell (1976, apud Awad & Voruganti, 2000: 558), que na década de 70, explicitou as dificuldades de conceituar o tema qualidade de vida: "qualidade de vida é uma vaga e etérea entidade, algo sobre a qual muita gente fala, mas que ninguém necessariamente sabe o que é". Esta citação feita há mais de 34 anos nos demonstra às controvérsias sobre o conceito do tema em questão.
Concordamos com Minayo e colaboradores (2000: 8), quando atesta que qualidade de vida é:
uma noção eminentemente humana, que tem sido aproximada ao grau de satisfação encontrada na vida familiar, amorosa, social e na própria estética existência. Pressupõe a capacidade de efetuar uma síntese cultural de todos os elementos que determinada sociedade considera seu padrão de conforto e bem-estar. O termo abrange muitos significados, que refletem conhecimentos, experiências e valores de indivíduos e coletividades que a eles se reportam em variadas épocas, espaços e histórias diferentes, sendo portanto uma construção social com a marca da relatividade cultural.

Segundo o Grupo para Qualidade de Vida da Organização Mundial da Saúde (WHOQOL, 1993), a percepção do indivíduo sobre a sua posição na vida, dentro do contexto sócio-cultural em que vive é condição sine qua non para o alcance da qualidade de vida.
Assumpção e colaboradores (2000) citam que Shin & Johnson (1978), afirmam que a qualidade de vida para ser atingida, depende da satisfação de desejos individuais, auto-realização e uma compensação satisfatória consigo mesmo e com os outros.
Ainda destacam Jenney & Campbel (1977), que criticam a falta de definições no meio acadêmico e científico para a qualidade de vida.
Os mesmos autores também utilizam as idéias de Bradlyn et al. (1996) que define qualidade de vida como multidimensional, não se resumindo ao aspecto social, físico e emocional, mas também que estes aspectos sirvam de parâmetro às alterações que ocorram durante o desenvolvimento. Também fazem referência a Eiser (1997), que observa a grande diferença entre o que é qualidade de vida "infantil" dentro da visão de um adulto e de uma criança.
Uma definição bem clássica é de 1974, onde Seidl e Zannon (2004: 582) mencionam Andrews (apud Bowling, p. 1448): "qualidade de vida é a extensão em que prazer e satisfação têm sido alcançados".

A QUALIDADE DE VIDA E O BRINCAR.
A respeito do assunto, MASLOW (1973), citado por APPLEY & COFER (1976) hierarquiza as necessidades do homem, afirmando que a necessidade posterior só é realizada quando a anterior estiver satisfeita. Os tipos de necessidades citados pelo referido autor são por ordem de importância: necessidades fisiológicas, de segurança, de afeição, de auto-estima e de auto-realização.
Seguindo a idéia de MASLOW (1973), a criança deve primeiramente satisfazer suas necessidades fisiológicas e de segurança, pra a partir daí satisfazer suas necessidades relacionadas com a afetividade, a estima e a realização de objetivos. Portanto, para as crianças, após cumprirem suas necessidades fisiológicas básicas (respirar, locomoção, alimentação, entre outras) e suas necessidades de segurança (aqui é incluído a moradia), os outros fatores de necessidades podem ser adquiridos através da brincadeira.
Através do ato de brincar a criança pode satisfazer seus desejos, sejam de ordem afetiva, relacionada à estima ou a realização de objetivos e finalidades. Durante a prática lúdica, a criança exercita suas capacidades de relacionamento, aprende a ganhar, a perder, opor-se, expressar suas vontades e desejos, negociar, pedir, recusar, compreende que não é um ser único e que precisa viver em grupo respeitando regras e opiniões contrárias; enfim, adquire afeição. Brincando educa sua sensibilidade para apreciar seus esforços e tentativas, o prazer que atinge quando consegue finalizar uma tarefa (montar um quebra-cabeça ou pegar o colega) faz com que se sinta realizada por atingir uma meta, levando-a a auto-estima. A brincadeira desafia a criança e a leva a tingir níveis de realização acima daquilo que ela pode conseguir normalmente.
Para reforçar este entendimento, AUSUBEL, NOVAK & HANESIAN (1980, p. 217) colocam como fatores primordiais para uma boa qualidade de vida os seguintes fatores (em ordem de aquisição):

Conservar a vida (subsistência);
Manter a segurança (conforto);
Conseguir o prazer (humor e diversão);
Experimentar mudanças e novidades;
Expandir o ego;
Sentir auto-respeito.

Mais uma vez observa-se que, a criança somente após atingir as condições de subsistência (necessidades fisiológicas) e de segurança, conseguirá partir para os outros fatores; e, novamente através da brincadeira, todos os outros itens podem ser atingidos, pois o prazer em brincar é indiscutível, a experimentação do novo vem com os desafios envolvidos nos jogos e brincadeiras infantis, a auto-estima e o auto-respeito também são facilmente realizáveis através do ato de brincar, pois como já foi citado, ao brincar a criança descobre seus limites, atinge metas e se realiza.
A qualidade de vida pode ser conceituada como o grau maior ou menor de satisfação das carências pessoais, observando que a busca pela boa qualidade de vida consiste mais claramente em visar situações prazerosas, e menos em evitar aborrecimentos ou vivências problemáticas, e é isso o que a brincadeira reflete aos pequenos.
Sabeh e Verdugo (2002) em sua busca de encontrar um instrumento de avaliação da percepção de qualidade de vida na infância realizaram uma categorização para detectar dimensões, baseado em modelos de qualidade de vida já construídos, especialmente o de Schalock (1997). As categorias são:

1. Ócio e atividade recreativa: experiências de ócio, recreativas e de tempo livre como jogos, esportes, atividade física, televisão, vídeos, realizadas de forma individual ou em grupo;
2. Rendimento: relacionado ao desempenho e aos resultados alcançados em atividades escolares ou esportivas;
3. Relações inter-pessoais: interação positiva ou negativa com e entre pessoas de seu meio. Aqui se inclui o vínculo com animais;
4. Bem-estar físico e emocional: estado físico e saúde da criança, de familiares e amigos;
5. Bem-estar coletivo e valores: situações sociais, econômicas, políticas que a criança percebe de seu meio sócio-cultural, assim como em relação à valores humanos;
6. Bem-estar material: consecução e relação com objetos, e a característica física dos ambientes em que vivem.

Desta forma, a percepção infantil sobre qualidade de vida requer muitos fatores. As crianças são sujeitas à mudanças, sendo influenciadas por eventos cotidianos e problemas crônicos. Para as crianças bem estar pode significar o quanto seus desejos e esperanças estão próximos do que acontece.
O contexto sócio-econômico, o grau de instrução escolar, a participação dos pais, sua importância dentro do seu grupo de amigos, suas potencialidades física e mental são fatores que interferem claramente na definição de qualidade de vida pelas próprias crianças. Outro fato muito importante é o material, na infância os brinquedos e outros materiais lúdicos adquirem um fator condicionante à felicidade e, por conseguinte, a consecução da qualidade de vida.
Observamos que nas categorias acima expostas de Sabeh e Verdugo (2002), o ócio e a atividade recreativa, é a dimensão onde o brincar está incluso, sendo, portanto, um dos fatores para a aquisição da boa qualidade de vida infantil.
Assim, brincadeira ultrapassa de muito o prazer sinestésico, oferecido pela prática do movimento. Possibilita, de forma bastante eficaz, as diversas necessidades individuais, multiplicando assim, as oportunidades de se obter prazer e, conseqüentemente, otimizar a qualidade de vida.

CONCLUSÕES
Concluímos que o profissional de Educação Física deve preencher as necessidades de afeto, auto-estima e auto-realização das crianças num programa de atividades lúdicas, envolvendo aos jogos e brincadeiras em seu planejamento, não como um apoio auxiliar, mas como meta principal, pois a soma de prazer que uma criança obtém durante as atividades lúdicas em que exercita o corpo e a mente através da brincadeira, aprimorará sua qualidade de vida, potencializando o otimismo e reduzindo o nível de stress a que freqüentemente está submetida, independente de situações agradáveis ou desprazerosas enfrentadas ao longo do seu cotidiano.
A bem das propostas defendidas neste trabalho, recomenda-se também ao profissional de Educação Física que transcenda a preocupação pelo excesso do tecnicismo nas aulas de educação física infantil, que se despreocupe com a freqüência cardíaca ou com o volume e a tonicidade muscular dos freqüentadores de atividades corporais orientadas. Aconselha-se, ao contrário, que ele aspire, sobretudo, a satisfazer as privações e as necessidades sócio-psicológicas de seus discípulos: manter-se-á, portanto, atento, (como lhe convém), ao grau de melhorias e renovações positivas concernentes à qualidade de vida dos membros do grupo a que atende.

Ref. Bibliográfica:
1. ASSUMPÇÃO, F.D.Jr., et al. Escala de avaliação da qualidade de vida (Autoquestionnaire qualité de vie enfant imagé - AUQEI): validade e confiabilidade de uma escala de vida em crianças de 4 a 12 anos. Arq Neuropsiquiatr 2000;58(10:119-127).
2. APPEY, M. H. & COFER, C.N. Psicologia de la motivación. Mexico: Trillas, 1976.
3. AUSUBEL, David p.; NOVAK, Joseph D. & HANESIAN, Helen.
Psicologia educacional. 2a ed. Rio de janeiro: Interamericana, 1980.
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5. CONFEF, Conselho Federal de Educação Física. Carta Brasileira de Educação Física. Belo Horizonte, 2000.
6. DANTAS, R.A.S., SAWADA, N.O., MALERBO, M.B., Pesquisa sobre qualidade de vida: revisão da produção científica das universidades públicas de São Paulo. Rev. Latino-am Enfermagem 2003 julho-agosto; 11 (4): 523-8.
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8. PREBIANCHI, H.B. Medidas de qualidade de vida para crianças: aspectos conceituais e metodológicos. Psicologia, Teoria e prática. Campinas, Ano 2003, v.5,n.1,55-70.
9. SABEH, E.N, VERDUGO, M.A., Evaluación de la percepción de calidad de vida em la infancia. Psicothema, 2002, vol 14, n 1, pp. 86-91.
10. SABEH, E.N., VERDUGO, M.A., Revisión critica del uso del concepto de calidad de vida em la infância. Manuscrito no publicado, Universidad de Salamanca, 2000.
11. SEIDL, E.M.F; ZANNON, C.M.L.C. Qualidade de vida e saúde: aspectos conceituais e metodológicos. Cad. Saúde pública, Rio de Janeiro, 20(2):580-588, mar-abr, 2004.
12. SILVA, M.G.N., NASPITZ, C.K., SALÉ, D. Qualidade de vida nas doenças alérgicas: Por que é importante avaliar? Revista Brasileira de Alergia e Imunopatologia. São Paulo, Vol 23, nº 6: 260-269, nov-dez, 2000.
13. WHOQOL Group. Measuring quality of life: the development of the world Health Organization Quality of Life Instrument (WHOQOL). Geneva: World Health Organization, 1993.

*Educador Físico, Mestrando em Educação em Saúde, UNIFOR (Fortaleza - Ceará)

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